🔎 Lente #119: Como foi ficar frente a frente com uma golpista
Boa sexta-feira, 12 de janeiro de 2024. Veja os destaques desta edição da newsletter sobre desinformação da Lupa:
Como foi ficar frente a frente com uma golpista;
Desinformação e eleições, a combinação perigosa de 2024;
Fakes contra padre Júlio são baseadas em notícias antigas e sem provas.
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Como foi ficar frente a frente com uma golpista
Pontualmente às 14h de uma terça-feira de setembro de 2023, eu estava em frente à entrada de um condomínio de apartamentos populares em um bairro próximo ao centro de Mogi das Cruzes (SP). Não sabia como — ou se — a professora Sheila Mantovanni, que havia sido presa por ter participado dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, receberia eu e a equipe de produção do minidocumentário da Lupa sobre os ataques em Brasília.
Queríamos entender o que motivou pessoas comuns a saírem de suas casas, viajarem centenas de quilômetros em ônibus e acamparem e marcharem até a Praça dos Três Poderes para tentar depor um governo democraticamente eleito.
Ainda antes de ver o rosto da professora, a primeira parte do corpo dela que me chamou a atenção foram os pés — o direito tinha uma tornozeleira eletrônica adornada com um adesivo da bandeira do Brasil. Mesmo desconfiada, ela aceitou nos receber. Abriu as portas do pequeno apartamento, serviu água gelada e disse: “que direitista não conhece a Lupa?”.
Esse comentário é representativo do quão complexo é o fenômeno social da desinformação. Mesmo já tendo visto conteúdos falsos propagados ou repassados a ela sendo desmentidos, Sheila Mantovanni continua acreditando naquilo que a motivou a ir a Brasília naquele fatídico 8 de janeiro: que as urnas eletrônicas foram fraudadas — o que não é verdade —, que é preciso ‘salvar o país’ e os ‘cidadãos de bem’ de uma suposta ameaça comunista, que é preciso defender as crianças da ideologia de gênero e que só o Exército seria a solução.
Antes de a Sheila aceitar nos receber em sua casa no interior de São Paulo, eu tentei contato com 49 pessoas que participaram dos atos, que conheciam ou advogavam por alguém que foi preso em Brasília. Tomei café com uma senhora idosa de Santa Catarina que, aos 82 anos, ia todo dia a um acampamento em frente ao Batalhão do Exército de Florianópolis logo após as eleições de 2022. Me contou ter certeza de que o pleito foi uma fraude porque viu teorias sobre isso no WhatsApp e no YouTube. Na hora de gravar entrevista, porém, ela declinou.
Das quase 50 pessoas para as quais liguei, mandei mensagem ou tentei agendar um cafezinho, ninguém quis falar. Recebi xingamentos. Alguns me hostilizaram, outros me bloquearam no WhatsApp ou nas redes sociais, negaram qualquer relação com os ataques ou tentaram me intimidar de alguma forma. Até que um advogado topou intermediar entrevistas com três clientes seus que tinham passado pela prisão.
Depois de mais de 2 meses de negociação, detalhes de logística fizeram o advogado cancelar as conversas. Como já tinha o endereço da Sheila, eu e a equipe tentamos a sorte. O resultado dessa entrevista exclusiva está no minidocumentário lançado pela Lupa na última segunda-feira (8), um ano depois dos atos.
Psicólogos sociais que pesquisam o fenômeno da desinformação dizem que as pessoas tendem a procurar informações que confirmem suas próprias crenças. Ao contar parte de sua história para a Lupa, Sheila Mantovanni deu pistas de que essas crenças foram forjadas ainda na infância: uma educação conservadora e pais que defendiam o regime militar como a melhor época para a população brasileira.
A professora Sheila é uma personagem complexa exatamente porque não é ingênua, tampouco uma vilã. Não considero exagero afirmar que ela é, sim, uma vítima (consciente) de uma teia de mentiras repetidas milhares e milhares de vezes.
Ao contar sobre as primeiras vezes que se manifestou politicamente, durante as jornadas de junho de 2013, e depois como acabou se engajando nos movimentos da extrema-direita organizados pela internet, Sheila narra não só a própria história, mas a história recente da política no Brasil. Ela é protagonista: autora e ao mesmo tempo alvo de um projeto político estrategicamente alimentado pela desinformação.
Nesta semana, dois dias depois do lançamento do minidoc, a professora me ligou. Eu estava ansiosa para saber o que ela sentiu ao se ver na tela e ao ter algumas de suas falas desmentidas com fatos. Carismática, comentou sobre as checagens de algumas de suas frases, mas em nenhum momento admitiu que suas afirmações eram falsas. Disse ter gostado. Ela ainda sente orgulho. Lembrei, então, da última pergunta que fiz a ela quando conversamos na sala de sua casa, em setembro de 2023: “se você soubesse que passaria por tudo isso, a prisão, o julgamento, você faria de novo?”. Ela respondeu, sem nenhuma dúvida, que sim. E que, se fosse preciso, morreria pela causa.
Uma causa forjada na mentira.
Carol Macário
Repórter da Lupa
Desinformação e eleições, a combinação perigosa de 2024
As eleições municipais serão um dos compromissos mais importantes dos brasileiros em 2024. E aqui já vai um lembrete importante: quem precisa regularizar a situação eleitoral tem até o dia 8 de maio para isso.
Mas o título de eleitor em dia e uma boa pesquisa sobre os candidatos parecem não ser suficientes. A Justiça Eleitoral está preocupada — e muito — com os riscos da desinformação. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, já defendeu cassar o candidato que usar inteligência artificial para espalhar fakes nas eleições.
Ele, claro, não é o único e tampouco essa é uma preocupação apenas no Brasil. Haverá, em 2024, mais de 80 eleições em pelo menos 78 países. Para entender os desafios que vamos enfrentar, a Lupa conversou com um grupo de checadores profissionais que atuam em Estados Unidos, Argentina, Bangladesh, Filipinas, Índia, Indonésia, e Tailândia. Os profissionais pontuaram alguns dos nossos motivos de preocupação em relação à desinformação em 2024 e eles passam pela popularização da IA, roubo de dados e o surgimento de falsos “especialistas”.
A partir do dia 23 de janeiro, o TSE realiza audiências públicas para discutir o aperfeiçoamento das regras para as eleições deste ano. E o combate à desinformação e uso de IA certamente estarão no centro do debate. As minutas das resoluções estão em consulta pública e reforçam as punições já adotadas para quem compartilhar conteúdos enganosos com o objetivo de manipular o processo eleitoral.
E para entender que Brasil é esse que vai às urnas em outubro (e por consequência, terá de lidar com os desafios da desinformação), a Lupa publica, a partir de segunda-feira (15), uma série de reportagens de dados sobre o assunto. A série ‘Lupa nas Eleições' vai trazer o perfil do eleitorado brasileiro com recorte por Estado e município, além do perfil dos prefeitos e dos vereadores eleitos nas últimas duas décadas.
Mais do que conhecer os candidatos, é importante entender que Brasil é esse que vai elegê-los.
…nas fakes sobre o padre Júlio Lancelloti: Assim que o padre Júlio Lancellotti foi colocado como possível foco de investigação na Câmara dos Vereadores de São Paulo, o religioso também passou a ser alvo de uma onda de desinformação e discurso de ódio nas redes sociais. Monitoramento feito pela Lupa identificou uma corrente de informações falsas e descontextualizadas que o acusa — sem provas — de abuso sexual e pedofilia. Perfis nas redes sociais de lideranças políticas da direita ajudaram a aumentar a circulação de fakes sobre Lancellotti. Até o dia 10 de janeiro, pelo menos dez vereadores retiraram o apoio a uma CPI na Câmara paulistana, que decidirá em fevereiro, após o recesso, se a comissão será instalada.
…nos personagens do 8/1: Os atos golpistas de 8 de janeiro foram marcantes, não só pelas imagens da invasão aos prédios dos Três Poderes em Brasília, mas também pelos personagens emblemáticos que participaram dos ataques. Um ano depois, a Lupa mostrou como estão algumas dessas pessoas. Spoiler: a maioria continua detida ou deixou a prisão no fim de 2023. E por falar em 8/1, ao menos seis parlamentares foram às redes sociais no dia 8 de janeiro de 2024 para promover a narrativa de que os ataques não eram parte de uma tentativa de golpe de Estado. Dados extraídos do LupaScan, sistema que monitora as redes sociais dos políticos eleitos em busca de desinformação e discurso de ódio, mostraram que os deputados federais Evair Vieira de Melo (PP-ES), Carlos Jordy (PL-RJ) e Sóstenes Silva Cavalcante (PL-RJ), além dos senadores Magno Malta (PL-ES), Cleitinho (Republicanos_MG) e Jorge Seif Junior (PL-SC), usaram suas contas no Telegram e YouTube para divulgar conteúdos que negam o caráter anti-democrático dos ataques de 8 de janeiro de 2023.
…no canal de notícias 100% feito por IA: Já imaginou assistir a um noticiário gerado inteiramente por inteligência artificial (IA)? Esta é a proposta do NewsGPT, que diz oferecer uma “perspectiva imparcial” por meio da “verdade não humana”. Também promete “eliminar opiniões”, apesar de pedir que os espectadores ajudem a ensinar a tecnologia “reportando notícias falsas e compartilhando a verdade”. Ainda é cedo para entender o impacto da ideia, mas os desafios – e riscos – são imensos. Afinal, quem garante que um robô treinado por humanos será imparcial? A IA usará critérios jornalísticos para avaliar e produzir o conteúdo? Como assegurar que a desinformação será barrada do noticiário? Por enquanto, não há respostas.
Dicas? Correções? Escreva para lupa@lupa.news
Obrigado pela leitura e até a próxima semana
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