🔎 Lente #14: Desinformar é exercer liberdade de expressão?
Boa sexta-feira, 9 de julho. Nesta edição da Lente, a newsletter sobre desinformação da Lupa, você vai ler que:
Apontado como desinformador, Trump processa plataformas de mídias sociais por cerceamento de liberdade de expressão
Modificar sua aparência nas mídias sociais ao ponto de se tornar irreconhecível é um crime?
Governo da Índia quer que Twitter se responsabilize pelo conteúdo de terceiros que circula em seu ecossistema
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A indignação de um desinformador quando lhe tiram a oportunidade de mentir
O ex-presidente americano Donald Trump anunciou na quarta-feira (7) que entrará com processos contra três das maiores empresas de tecnologia dos EUA - Facebook, Twitter e Google, assim como seus respectivos CEOs. A ação é o que, nos EUA, se chama de class-action suit, movida por uma pessoa - Trump, neste caso -, mas cujo veredito pode beneficiar outras na mesma situação. Um fato importantíssimo, portanto, pelas repercussões possíveis.
E o que alega Trump? O de sempre: que foi censurado injustamente pelas empresas. As contas do ex-presidente foram suspensas do Twitter e do Facebook/Instagram depois que seus apoiadores invadiram o prédio do Capitólio no último 6 de janeiro, provocados por seguidas declarações dele de que o processo eleitoral americano havia sido fraudado e manipulado (uma alegação nunca provada, diga-se de passagem). A queixa indica que as empresas usaram “autoridade inconstitucional delegada a elas pelo Congresso” para negar ao ex-presidente e a quatro demandantes adicionais seus direitos da Primeira Emenda constitucional americana. Processo semelhante contra as plataformas de checagem e mídia PolitiFact, Science Feedback, Poynter Institute, Facebook e Mark Zuckerberg foi arquivado na semana passada.
Para quem estuda o fenômeno da desinformação, esta é uma estratégia clássica: dar uma opinião baseada (como diz uma amiga) "em vozes da minha cabeça" e vender aquilo como fato ou evidência sem apresentar algo que a comprove. O que comprova a veracidade do que é dito é a autoridade de quem fala. Nem os sofistas gregos eram tão petulantes. Tanto é que Trump continua a espalhar suas teses sobre a eleição fraudada de 2020, alegando sem fundamento que venceu. Com um detalhe: funcionários do sistema eleitoral americano nos estados e municípios, o próprio procurador-geral dos EUA e vários juízes, incluindo alguns que o próprio Trump nomeou, já disseram e repetiram que não há evidências da fraude que ele alega.
A tática também é comum no Brasil. O sujeito cria um website na internet que se diz "jornalístico", mas é basicamente opinativo na defesa de uma causa, à esquerda ou à direita. E depois decide processar as plataformas de checagem de fatos - todas acusadas de serem "comunistas" ou "esquerdistas" - quando sua opinião não é sustentada por evidências ou dados. Note bem: uma plataforma de checagem nunca checa opinião. Porque não há base de dados a ser confrontada com "ele é bonito" ou "ela é chata". Mas elas podem e devem checar se um integrante do governo diz que há fraude no processo eleitoral. Porque se há fraude, há um processo na Justiça eleitoral. Um processo, por sua vez, termina numa decisão judicial, e isso é uma evidência, um fato. Até hoje, desde a implantação da urna eletrônica, não há um só processo confirmado de fraude eleitoral nas eleições. A quem interessa essa narrativa?
A despeito de toda a discussão sobre até que ponto um discurso de desinformação ou um discurso de ódio é liberdade de expressão, há um imenso mal-entendido sobre como as plataformas de mídias sociais tomam decisões de moderação de conteúdo. Tudo bem que nenhuma é clara e 100% transparente sobre o que define um conteúdo removível. Ou é clara num país e não é em outro. Trump chegou a citar, na ação, a revisão do Conselho de Supervisão do Facebook sobre sua suspensão, que criticava a natureza aparentemente arbitrária pela qual a empresa o removeu da plataforma (a tal falta de clareza e transparência). Porém, o conselho não disse que Trump falou a verdade e foi injustamente censurado. Ele pediu ao Facebook para ser mais transparente na decisão de suspender uma conta. Qualquer conta.
Trump não é o único. Muitos usuários do Facebook veem qualquer tipo de classificação de suas postagens como censura — incluindo a marcação de conteúdos como falsos com base no trabalho de plataformas de checagem. Alguns dizem que os checadores estão deliberadamente limitando seu discurso. E entram com ações na Justiça, sendo que os verificadores não tomam qualquer decisão sobre conteúdos publicados no Facebook. Cabe à plataforma — e somente à plataforma — a decisão do que fazer com conteúdos desinformativos.
Desde 2016, o Facebook tem o Programa de Verificação de Fatos por Parceiros Independentes, ou 3PFC — do qual a Lupa faz parte. Por esse programa, organizações de verificação de fatos signatárias da International Fact-Checking Network (IFCN) sinalizam à plataforma conteúdos com informações falsas — e não opiniões — que estão circulando, incluindo necessariamente nesta sinalização uma matéria de checagem que explique o porquê. Quando possível, a inteligência artificial do Facebook busca cópias dessa mesma peça de desinformação que circulam na plataforma.
Essas publicações não são apagadas, mas passam a circular com um aviso alertando ao usuário que a mensagem contém informações que não são verdadeiras, e com circulação reduzida. Não se trata, portanto, de censura, mas sim de evitar que informações comprovadamente falsas, que muitas vezes podem causar riscos a indivíduos ou à população em geral, se propaguem pela plataforma.
E no entanto, o desinformador é um sujeito resiliente que mente até transformar sua narrativa em algo verdadeiro para uma determinada plateia. Tanto que, ainda que processando as plataformas de mídias sociais, Trump ajudou a criar sua própria plataforma: a Gettr, lançada no domingo passado (4/7). A nova plataforma promete "lutar contra a cultura do cancelamento " e "defender a liberdade de expressão", além de "desafiar" o monopólio das big techs. O nome é uma corruptela de "Getting Together" (ficando juntos, em português). E voltamos sempre à pergunta: até que ponto um discurso de ódio ou uma desinformação como "vacina mata" é liberdade de expressão quando afeta a saúde e a vida de outros?
Um grande abraço,
Gilberto Scofield Jr
Diretor de Marketing e Relacionamento
Mentir sobre si mesmo nas redes é antiético, desinformativo ou criminoso?
Você já ouviu falar em catfish? Trata-se de uma pessoa se passar por outra online com objetivos que vão de golpes financeiros a romance ou sexo à beira do abismo. É chato, perigoso e desagradável. E segundo o artigo 307 do nosso Código Penal, trata-se de um crime: falsa identidade, que pode dar de três meses a um ano de cadeia. Mas e se eu decido apenas retocar a foto para tirar aqueles olheiras de noite mal dormida, uma torturante espinha no meio da testa ou uma cicatriz que sempre me incomodou? Continua sendo eu, mas, digamos… melhorado. Tudo bem, então?
Não na Noruega. Por lá, essas mudanças estão sendo levadas bastante a sério. Novas leis estão buscando combater padrões de beleza irrealistas em plataformas de mídia social em um esforço para conter a dismorfia corporal no país. Emendas à Lei de Marketing de 2009 norueguesa tornam ilegal que influenciadores compartilhem fotos retocadas de seus corpos em postagens promocionais nas redes sociais, sem revelar claramente - por um selo oficial do governo - que a imagem foi editada. As exigências não se limitam a imagens em que lábios, cinturas e músculos ficam exagerados depois que a foto é tirada, mas também àquelas criadas com filtros que mudam a percepção que se tem da pessoa. Nem é preciso dizer o quanto a polêmica se instalou na Noruega.
Mas chocante mesmo é a reportagem publicada pela Vox na terça-feira (6), sobre este vídeo, que viralizou no TikTok, no qual a usuária Beka Day conta o caso de Diana Deets, também conhecida pelo apelido Coconut Kitty 143. Em ambos os perfis, trata-se de uma jovem em poses provocantes e pouquíssima roupa sensualizando e chamando para seu canal, onde ela sorteia pôsteres e fins de semana exclusivos em sua companhia. Até aí nenhuma novidade. Mas o que Beka chama a atenção, e qualquer pessoa pode de fato comprovar isso, é que, quando Diana começou o seu perfil no Instagram, era uma mulher jovem, porém adulta. Com o tempo, ao contrário dos seres humanos, ela foi "adolescendo" até virar a personagem Coconut Kitty que é hoje. E o ponto de Beka, apesar de todo o apelo financeiro da fórmula ninfeta-sensualizando-para-ganhar-audiência-e-likes, é a tremenda desonestidade da coisa. Comparem uma foto de Diana no início do Instagram com uma mais atual (acima). Parece uma mulher e uma menina, mas é a mesma pessoa.
A Vox resume o ponto de vista ético levantado por Beka em seu vídeo: "Os limites são cada vez mais relevantes quando se trata de desconstruir a auto-apresentação on-line em grande escala. Todo mundo que usa a mídia social retrata inerentemente uma certa versão de si mesmo, omitindo o resto; encenar é a essência da internet, ao ponto em que, pode-se argumentar, nossas ideias sobre verdade e autenticidade não têm sentido, ou pelo menos são grosseiramente incapazes de descrever adequadamente o que está acontecendo. Ainda assim, ficou mais fácil do que nunca assumir uma identidade online quase inteiramente nova, sem levar em conta as consequências que tal comportamento pode causar".
...no governo da Índia e no Twitter: a plataforma de mídia social está enfrentando um grande problema num dos seus maiores mercados, segundo reportagem da CNN. O governo indiano entrou com um processo na Justiça do país na segunda-feira, 5/7, determinando que o Twitter não tem mais imunidade sobre o conteúdo postado em sua plataforma por terceiros na Índia. O tribunal ainda não se pronunciou sobre o assunto, mas se o governo vencer, na prática, o Twitter pode ser responsabilizado legalmente por qualquer coisa que seus usuários postarem.
...na vigilância online das redes sociais: reportagem na Wired mostra como serviços como Media Sonar, Social Sentinel e Geofeedia analisam conversas online, dando pistas à polícia e aos administradores de algumas cidades nos EUA sobre o que centenas de milhares de usuários estão fazendo e dizendo. Mas há plataformas e aplicativos que afirmam que fazem isso sem invadir a privacidade. Um deles se chama Zencity, que se vende como um "identificador de hábitos", mas sem revelar as identidades das pessoas. Segundo a empresa, relatórios trazem insights sobre como os residentes estão se movimentando na vizinhança, sem dizer quem é quem. É Grande Irmão que fala?
...nas clínicas de células tronco: outra da Wired. A escritora Lindsay Gellman investiga o crescimento explosivo das clínicas de células-tronco nos EUA, que muitas vezes prometem curas milagrosas e tratamentos dramáticos que têm pouca base na medicina legítima. A regulamentação tem sido irregular e dezenas de clínicas de células-tronco proliferaram. Em mãos erradas, esses tratamentos podem ser desastrosos. Os chamados eventos adversos incluem infecção bacteriana aguda da coluna, embolia pulmonar, cegueira, derrame, parada cardíaca e até morte.
Lupa e Redes Cordiais - Treinamento para agentes comunitários de saúde
Online e gratuito, o projeto consiste em uma série de videoaulas que vai esclarecer dúvidas e boatos sobre as vacinas, além de compartilhar sugestões sobre como combater a desinformação. Se você conhece algum agente de saúde, encaminhe o link para inscrição.
Dicas? Correções? Escreva para lupa@lupa.news
Obrigado pela leitura e até a próxima semana