🔎 Lente #29: CPI da Pandemia e a falta de diálogo no combate à desinformação
Boa sexta-feira, 22 de outubro. Nesta edição da Lente, a newsletter sobre desinformação da Lupa, você vai ler que:
Relatório da CPI da Pandemia escancara falta de diálogo na busca de soluções efetivas de combate à desinformação
Faltam evidências que sustentem argumentações sobre o “gabinete do ódio”
O ex-presidente Trump afirmou que vai lançar uma rede de mídia social chamada "Truth Social" ("Verdade Social")
Passa vergonha alheia por causa daquele parente que insiste em compartilhar desinformação? Mande o link para essa pessoa assinar esta newsletter.
Edilson Rodrigues/Agência Senado
Por que é tão difícil ouvir os checadores quando o assunto é desinformação?
Para surpresa de um total de zero pessoa, o relatório final da CPI da Pandemia foi apresentado nesta semana propondo, entre outras coisas, encaminhamentos legislativos e jurídicos para a desinformação no Brasil. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) sugeriu até mesmo um conceito para "notícia falsa" e, a partir dele, a aplicação de penas, inclusive de prisão, para quem produz e/ou compartilha "fake news". O relatório dedica mais de 300 páginas ao tema da desinformação. Nada disso significa que estamos mais próximos de uma solução para o problema, já que as propostas apenas deixam evidente a falta de debate sobre o tema.
Quem minimamente acompanhou o noticiário no Brasil nos últimos meses sabe que a comissão formada para avaliar as ações do governo federal ― e a falta delas ― durante a pandemia se tornou, em parte, uma comissão sobre "fake news". E que esse foi um assunto bastante comentado durante os trabalhos da CPI, inclusive com citação a checagens, não apenas da Lupa, mas também de outros checadores do Brasil, para rebater informações falsas ditas por depoentes em muitas sessões. A certa altura, a equipe de Renan Calheiros chegou a "produzir checagens", o que nada mais era do que um trabalho de coleta de informações, típico de assessoria parlamentar, que em nada tem a ver com o rigor, a transparência, a independência e o apartidarismo que aplicamos no fact-checking.
A partir do momento em que tivemos contato com o relatório, nossa equipe de Jornalismo se mobilizou para desdobrarmos o que fosse possível em informação qualificada para quem acompanha a Lupa. Neste trabalho, mostramos que pelo menos três ondas de desinformação sobre a pandemia ficaram de fora do documento final da CPI ― o que nos causou certa curiosidade, já que a comissão tratava justamente desse assunto, não é? Entre elas estão conteúdos falsos sobre hospitais e caixões vazios, dois boatos tipicamente brasileiros envolvendo Covid-19. Também mostramos, em análise publicada pela Folha de S.Paulo, que os depoentes da CPI fizeram mais de 60 declarações falsas em suas falas à comissão. Com essas falas falsas, tentaram justificar ações ou explicar decisões tomadas durante a pandemia. Não funcionou.
É claro que tudo isso mostra o valor da checagem de fatos e o quanto somos referência no que fazemos. Também nos dá a certeza de que nosso trabalho qualifica o debate público e é fundamental em tempos sombrios de captura de narrativas e distorção dos fatos. O que não nos impede de fazer uma leitura crítica e reconhecer que experimentamos também por aqui a sensação de que, neste caso, a checagem está sendo usada mais por conveniência do que por convicção. Caso contrário, o que explica o fato de que checadores, pesquisadores, professores e diversos outros atores que lidam com a desinformação diariamente não foram chamados a debater soluções possíveis para isso e contribuir com os encaminhamentos sugeridos no relatório?
Na quarta-feira (20), publiquei um editorial no site da Lupa dizendo que, ao alijar os checadores dessa discussão, a CPI tinha produzido uma "aberração conceitual" na tentativa de definir "notícia falsa" e que faltou debate com quem se dedica ao tema. Na publicação que fizemos no Instagram, muitos disseram que eu estava sendo corporativista, que seria melhor "descer do pedestal". Entendo as críticas, mas não mudo o que disse: na solução para a desinformação, o caminho é colaborativo e não há espaço para atos de heroísmo, sejam eles de nossa parte, sejam eles da parte de qualquer pessoa que esteja envolvida com o tema ― e aqui incluo, sim, os políticos, e não somente os que fazem parte da CPI da Pandemia.
Não há experiência positiva ― nenhuma ― em países que criaram leis sobre desinformação. Mas há, sim, ameaças e prisões, suspensão de fornecimento de internet e bloqueios injustificados de contas em redes sociais. Caso você não tenha percebido: há episódios de censura e de real cerceamento à liberdade de expressão (e aqui não estou falando dessa "liberdade de expressão" da qual se fala na internet, entendida como dizer qualquer coisa que se pensa. Isso é, na verdade, falta de educação e pode chegar a ser, inclusive, crime).
Não é nosso objetivo monopolizar qualquer discussão sobre desinformação. Não somos os únicos capazes de dar contorno a esse tema e sempre dissemos isso. Mas temos experiência e conhecimento suficientes para contribuir nesse debate ― assim como os têm outros atores da sociedade, e todos devem estar envolvidos. Não existe uma solução única para a desinformação. É preciso olhar para tecnologia, para educação, para conteúdo, para a responsabilidade de cada setor da sociedade. Por enquanto, não é por via jurídica ou projeto de lei. E também não é com canetada no Congresso.
Como disse uma amiga minha: mais uma vez, falta diálogo e humildade em um país onde já falta tanta coisa.
Um abraço,
Natália Leal
CEO
CPI: faltaram evidências sobre o gabinete do ódio
Um dos pontos de destaque do relatório da CPI foi o chamado "gabinete do ódio". Em maio deste ano, o portal Congresso em Foco publicou uma reportagem muito interessante com ex-aliados do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mostrando como funciona o tal gabinete. A matéria foi escrita no âmbito do inquérito que apura esquema de notícias falsas e ataques a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Naquela época, segundo relato do deputado federal Heitor Freire (PSL-SP), já se sabia que o núcleo do tal gabinete era composto por Matheus Sales, Tercio Arnaud Tomaz, assessores especiais da Presidência da República, e Mateus Matos Diniz, assessor da Secretaria de Comunicação Social (Secom) ― o que se convencionou chamar de “núcleo operacional do gabinete do ódio”. Todos eles são ligados ao vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente.
Os quatro estão no quadro acima, anexado ao relatório, com a adição do assessor especial para Assuntos Internacionais do presidente, Filipe Martins (aquele denunciado pelo Ministério Público e absolvido por um suposto gesto supremacista no Senado) e dos assessores Felipe Mateus e José Mateus (como tem Mateus no Planalto, hein?). Segundo os parlamentares, os ataques eram coordenados, feitos em várias plataformas simultaneamente e regionalizados com a ajuda de assessores parlamentares em vários estados.
O relatório fala em modus operandi: "Assim, constatamos que essa organização era formada por, ao menos, cinco núcleos articulados entre si, a saber: o núcleo de comando (1), que interage diretamente com o núcleo formulador (2), núcleo político (3), núcleo de produção e disseminação das fake news (4) e núcleo de financiamento (5)", seguido da descrição de cada núcleo. O núcleo considerado principal é o de comando, que, segundo o relatório, "é formado pelo presidente da República e seus filhos que ocupam cargos políticos, a saber: o senador Flávio Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro. Esse núcleo tem a função de dirigir a organização e orientar estrategicamente as ações realizadas nos níveis inferiores da hierarquia, dando-lhes diretrizes e informando-lhes prioridades de ação".
No entanto, faltam mais evidências para comprovar todo o mecanismo do "gabinete de ódio", tanto do ponto de vista de quem o integra, como do ponto de vista de como funciona. Tudo que se tem são depoimentos de pessoas ligadas à presidência da República, ex-aliados e políticos de um modo ou de outro ligados à investigação. Afirma-se, por exemplo, que pede-se o indiciamento somente de Filipe Martins e Tercio Arnaud porque, com relação aos demais, não há postagens específicas sobre a pandemia. O que significa isso? Postagem em seus canais? Mas como se prova que os outros integram o gabinete, então? O mesmo pode ser dito sobre o núcleo de financiamento da desinformação, restrito aos empresários Otávio Fakhoury, que integra o Instituto Força Brasil, investigado por essa comissão, e o empresário Luciano Hang. Mas como isso se dá na prática? E certamente não são os únicos e não se fala sobre isso.
Talvez essas evidências estejam no conjunto probatório, mas não fica muito claro como a CPI chegou a essas conclusões.
Gilberto Scofield Jr.
Diretor de Marketing e Relacionamento
Você já deve ter ouvido que fake news é o mal do século. Mas, se a maioria das pessoas sabe o impacto das mentiras, por qual motivo continuam escolhendo acreditar naquilo que não é verdade? Trazendo conceitos da psicologia e relacionando com as inovações tecnológicas, a oficina apresentada por Gilberto Scofield, diretor da Lupa, mostra as estratégias de convencimento da desinformação e sinaliza experiências positivas de como combatê-la. Faça aqui a sua inscrição no Sympla.
...na nova rede social do ex-presidente Trump: uma reportagem da Axios conta que o ex-presidente Trump revelou na quarta-feira (20) que sua rede de mídia social vai se chamar "Truth Social" ("Verdade Social"), e que ele pretende, inclusive, torná-la pública com ações em bolsa. E por que isso interessa? Bem, primeiro porque a rede de Trump se fundirá à Digital World Acquisition, companhia que tem como diretor financeiro o deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP), aliado do presidente Jair Bolsonaro. E a despeito da possibilidade de ter gente trocando desinformação neste ambiente, é bom observar que a maioria dos ex-presidentes americanos concentra seus legados na criação de bibliotecas presidenciais ou participando de atividades filantrópicas. Trump continua obcecado pelas redes sociais. A controladora da rede será o Trump Media & Technology Group (TMTG). Trump quer fazer um lançamento teste para convidados em novembro agora. A implementação para todo o país é esperada para o primeiro trimestre de 2022.
...em algoritmos com viés: Bryan Walsh, do Axios Future, escreve um artigo interessante sobre como os algoritmos de inteligência artificial (IA) empregados em tudo ― desde processos de contratação corporativa até Justiça criminal ― têm um problema persistente e muitas vezes invisível de preconceito. Sim, preconceito. Para resolver isso, segundo o artigo, uma solução seria realizar auditorias independentes que visam a determinar se um algoritmo é justo em suas escolhas a partir de dados, mas a auditoria algorítmica ainda está em sua infância. Até que a IA seja regida por regulamentos públicos e consistentes, é difícil conduzir auditorias dignas desse nome.
...na mudança de nome do Facebook: a empresa planeja mudar seu nome na próxima semana, de acordo com reportagem na "The Verge". Mark Zuckerberg deve falar sobre a mudança na conferência anual da empresa, no dia 28. Com isso, fica clara a ambição da empresa de ser conhecida por mais do que rede social ― e por todos os males que isso já acarretou à marca. A reformulação da marca provavelmente posicionaria o Facebook como um dos muitos produtos de uma empresa controladora, que supervisionaria outros produtos/marcas, como Instagram, WhatsApp, Oculus e muito mais. O porta-voz do Facebook se recusou a comentar esta história.
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Obrigado pela leitura e até a próxima semana