🔎 Trump, imigrantes, pets e o comunismo
#152: O que está por trás da acusação de que haitianos comem animais de estimação
Oi. Marcela Duarte, gerente de Produto, que vos escreve. Nesta edição, Natália Leal, diretora-executiva, destrincha o que está por trás da narrativa desinformativa apresentada por Donald Trump nesta semana de que haitianos estariam comendo pets em Springfield, Ohio. E ela mostra que já tivemos casos muito semelhantes por aqui, que seguem a mesma lógica. Sempre importante pensarmos qual a intenção por trás dos desinformadores. Deixo vocês com essa pulga atrás da orelha. Boa leitura e bom fds.
Imigrantes que ‘comem pets’, o fantasma do comunismo e o que se deixa de debater
"Eles estão comendo cachorros e gatos. As pessoas que entraram neste país estão comendo nossos pets", disse Donald Trump, o candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos no debate com a democrata Kamala Harris na última terça-feira (10). Em horário nobre na ABC, uma das principais emissoras do país, Trump acusou imigrantes haitianos de estarem se alimentando da carne de animais de estimação na cidade de Springfield — e não, Trump não se referia à fictícia Springfield dos Simpsons, e sim à real de Ohio, mas dado o teor da afirmação, não seria absurdo se questionar.
A ideia que o republicano propagou no debate partiu, mais uma vez, das redes sociais. No X, suspenso no Brasil, e no Truth Social (fundado pelo próprio Trump), apoiadores, congressistas republicanos e até mesmo o candidato a vice de Trump, JD Vance, disseminaram vídeos de animais pendurados em árvores, supostamente prontos para serem desossados, e de pessoas, em sua maioria negras, carregando animais mortos pela rua ou torturando bichinhos com fogo. São imagens sem contexto, certamente cruéis, mas sem qualquer indicação de que se trate de imigrantes ou mesmo de que os animais tenham sido capturados das casas de americanos de bem para saciar a fome de qualquer pessoa.
Ao afirmar que imigrantes estão comendo pets, Trump usa o pânico moral para estigmatizar determinados grupos, com a ideia de que eles não cabem em uma sociedade em harmonia. O conceito foi explorado em profundidade pelo sociólogo Stanley Cohen na década de 1970 — e a pesquisadora Alanis Mahara descreve em artigo a relação dele com a desinformação:
"Na ativação desse preceito, atuam ao menos três instâncias fundamentais para a popularização do pânico. Uma condição, um episódio, uma pessoa ou um grupo de pessoas passa a ser definido como um perigo para valores morais vigentes; seus traços são apresentados de forma estilizada e estereotipada (...); o tema é especulado sob a ótica do caráter moral por (...) pessoas interessadas em pautas conservadoras; o tema ganha notoriedade e espaço na opinião pública e então criam-se alternativas de combate ao fato anunciado."
Para Trump, a imigração é um problema e precisa acabar. "Os imigrantes roubam os empregos dos americanos, deturpam valores da sociedade americana e, agora, como se não bastasse, comem os animais de estimação. Onde vamos parar? Precisamos barrar a imigração." Esse é o discurso republicano. A narrativa dos pets amplia as consequências do que Trump considera o problema inicial: a imigração por si. Para aumentar o drama, por que não lançar mão de algo chocante?
A fala de Trump, coroada com um "se Kamala Harris vencer, os Estados Unidos vão virar uma 'Venezuela com esteroides'", já teve suas versões em terras brasileiras.
Em 2020, antes do segundo turno da disputa à prefeitura de Porto Alegre, apoiadores do então candidato Sebastião Melo (MDB) circularam pela zona Norte da cidade em um carro de som que bradava aos quatro ventos que, caso sua adversária, Manuela d'Ávila (PC do B), vencesse a eleição, a população iria "comer carne de cachorro, podem ter certeza. Vamos cuidar dos bichinhos. Nós vamos virar uma Venezuela. (...) Votem no 15, vocês não vão se arrepender. Vocês vão comer bifinho de carne de gado, não vai ser de cachorro."
Em 2021, em meio à crise da Covid-19 e da falta de oxigênio para pacientes internados em Manaus, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) também explorou essa narrativa. Circulava a informação de que a White Martins, empresa que tem planta na Venezuela, estava fornecendo cilindros de oxigênio para a capital do Amazonas. Bolsonaro agradeceu a ajuda, mas centrou sua fala em críticas ao governo venezuelano, dizendo que o país deveria dar auxílio-emergencial à sua população e que o salário mínimo de lá não comprava nem "meio quilo de arroz". "Não tem mais cachorro lá. Por que será? Alguma peste? Comeram os cachorros todos, comeram os gatos todos", disse ele a apoiadores em frente ao Palácio do Planalto.
A associação com a Venezuela remonta à narrativa que liga regimes comunistas a práticas de canibalismo. O dito "comunistas comem criancinhas" não está distante do "imigrantes comem animais de estimação" de Trump. E há razões ao longo da história para essa conexão.
No início do século XX, a Rússia socialista atravessou longos períodos de fome após a 1ª Guerra Mundial, a Revolução Russa e uma guerra civil que, combinadas, arrasaram o país. Na Ucrânia soviética dos anos 1930, no episódio conhecido como Holodomor, ou a Grande Fome, até 10 milhões de ucranianos morreram, segundo estimativa das Nações Unidas. Entre 1958 e 1961, até 55 milhões de pessoas morreram sem o que comer na China comunista. Em todos esses episódios há relatos de consumo de carne humana e de animais, em um contexto de extrema dificuldade econômica e social.
A associação de atos desesperados em busca de alimento a regimes comunistas parte daí, mas outros regimes ditatoriais também provocaram extremos quadros de fome. É o caso do Brasil dos anos 1970 e 1980 e do Gueto de Varsóvia, onde médicos judeus conduziram uma extensa pesquisa sobre os efeitos fisiológicos da privação de alimentos no corpo humano – que eles viviam no cotidiano – durante o regime nazista na Segunda Guerra.
É desse contexto, hoje muito mais no imaginário, que parte a fala de Trump no debate americano e que foi prontamente desmentida pelo jornalista David Muir, âncora da ABC e um dos moderadores do evento. Ele disse que "em referência a Springfield, Ohio, a ABC News entrou em contato com o prefeito, e ele nos informou que não há relatos confiáveis de que animais de estimação estejam sendo feridos ou maltratados por indivíduos da comunidade imigrante." Bolsonaro foi desmentido sobre a situação na Venezuela inúmeras vezes. Os apoiadores de Melo em Porto Alegre não foram checados, mas o então candidato venceu a eleição daquele ano e, agora, concorre à reeleição — e lidera as pesquisas de intenção de voto na capital gaúcha.
Trump não gostou de ser desmentido ao vivo, e sua militância passou a noite e o dia seguinte postando críticas ao moderador e à ABC. Consideraram a checagem (e outras feitas no mesmo evento) uma prova de que o debate foi armado por pessoas e organizações que têm lado e apóiam a campanha de Kamala Harris.
Ativar o pânico moral é uma estratégia desinformativa usada de forma irrestrita por quem tenta manipular o debate público em diferentes temas. Se o problema, de fato, existe é uma discussão secundária. Seja pelo “fantasma do comunismo” ou pelo estereótipo associado aos imigrantes, o que importa é apelar — desonestamente — ao medo gerado na população, enquanto ficam de lado questões fundamentais para a vida em sociedade, como o detalhamento de propostas e planos de governo de candidatos.
Ainda no tema da Lente de hoje, com a disputa por votos (e narrativas) na eleição dos EUA, cada candidato utiliza palavras e expressões alinhadas com seus objetivos de campanha, como mostra o glossário preparado pelo O Globo. Temas como “aborto”, “imigração” e “extremista”, entre outros, muitas vezes servem para embalar notícias falsas e teorias da conspiração (como acabamos de ler, aliás). Cabe até a análise de sentimentos, com a associação da palavra “alegria” para indicar um estado de espírito ou uma expressão de possível deboche com os eleitores. Nessa disputa, tudo indica que o vencedor das eleições americanas terá a palavra final na definição do termo “liberdade”, um dos motes das campanhas de lado a lado. (Flávia Campuzano, analista de Produto).
Você já deve ter se deparado com os rótulos de alerta contra desinformação nas redes. A boa notícia é que, segundo um estudo fresquinho da Nature Human Behaviour, esses alertas têm efeito até nos grupos mais céticos! A pesquisa mostrou que os rótulos ajudam a reduzir a crença e o compartilhamento de fake news. O estudo destaca ainda a importância do fact-checking e da manutenção desses mecanismos de combate à desinformação, para promover um ambiente digital mais seguro e confiável. Nada melhor do que saber que os rótulos de desinformação fazem diferença, né? (Evelin Mendes, editora-assistente)
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