🔎Como desmentimos uma fake sobre Tiradentes
#134: Ou um Orleans e Bragança usa negacionismo para manipular a política contemporânea
Antes de ser coordenador de Educação da Lupa, fui repórter, e, antes de ser repórter, passei 11 anos na universidade estudando História, entre a graduação e o doutorado. Desde a primeira aula, existia uma lição simples: são necessárias muitas fontes para confirmar a veracidade de um fato. É por isso que hoje eu, Raphael Kapa, conto a história de um deputado federal e hexaneto de D. João VI que resolveu criar um factoide sobre Tiradentes sem provas. E também como desbancamos essa narrativa desinformativa. Espero que goste!
Como a falsa fuga de Tiradentes virou estratégia negacionista
Feriados nacionais são momentos de reflexão e memória sobre importantes figuras e eventos históricos. No último 21 de abril, deveríamos lembrar Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, mas uma postagem do deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) levantou uma teoria controversa: a de que o mártir da Inconfidência Mineira não foi executado, mas sim fugiu para a França, onde viveu tranquilamente com sua família.
A postagem insinua que Tiradentes não apenas sobreviveu, mas também prosperou no exterior e chegou a voltar ao Brasil. A imagem, descrita como "ilustrativa", foi disseminada em grupos que frequentemente propagam desinformação, atrelando fatos históricos a teorias absurdas para manipular a opinião pública.
Segundo o livro “Em busca de um rosto — A república e a representação de Tiradentes”, de André Rodrigues e Maria Alda Cabreira, descrições contemporâneas à época do inconfidente o retratam de maneira bastante distinta das imagens heroicas comuns hoje e da publicada pelo deputado. Os pesquisadores trazem registros de companheiros de rebelião que indicavam que Tiradentes seria “feio”, “de olhos esbugalhados” e “com cabelos brancos”. Ou seja, a imagem ilustrativa compartilhada pelo deputado nem sequer está baseada em concepções historiográficas. Ficou curioso? Aqui vai a imagem gerada por Inteligência Artificial a pedido da Lupa, com base nos relatos de época.
Documentos históricos, como os registros de dois frades, descrevem detalhadamente o julgamento e a execução de Tiradentes e contradizem as afirmações de fuga e vida subsequente na França. Um desses textos — “Últimos momentos dos inconfidentes de 1789 pelo frade que os assistiu de confissão" — relata o caminho de Tiradentes até a forca, o enforcamento e a exposição de sua cabeça em Vila Rica, refutando qualquer teoria de fuga ou exílio. Na época, a presença de eclesiásticos era tida como um dado de fé pública de que a pena foi executada, e registros como esse, portanto, são atestados da veracidade do enforcamento e do esquartejamento de Tiradentes.
A publicação do deputado sugere que Tiradentes foi aconselhado a retornar ao Brasil anos mais tarde por D. João VI. Uma afirmação sem provas e historicamente improvável, já que a sentença foi um ato de Estado da família real portuguesa — mais precisamente de D. Maria, mãe de Dom João VI.
O escritor Lucas Figueiredo, autor da biografia de Tiradentes pela Editora Companhia das Letras, identificou os milhares de documentos que compõem o processo judicial da Conjuração Mineira, conhecidos como Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, e que não deixam margem a dúvidas de que Tiradentes foi condenado e, em seguida, enforcado, como mostrou verificação feita pela Lupa. A condução de seus restos mortais , do Rio de Janeiro a Minas, também foi registrada pela burocracia colonial e consta nos Autos.
Mas como a maioria das mentiras, há uma parte de verdade que cria espaço para teorias. O deputado Orleans e Bragança afirma ser “curioso que sua existência [de Tiradentes] nunca tenha sido divulgada durante o Brasil Imperial”, e é verdadeiro que a Conjuração Mineira foi divulgada apenas protocolarmente pela imprensa da época, sem destaque para a figura de Tiradentes. A construção dele como um herói nacional ocorreu bem depois.
O autor José Murilo de Carvalho, em “A formação das Almas”, explica que a República precisava de símbolos e encontrou em Tiradentes o herói ideal para representar a resistência ao autoritarismo imperial, distanciando-se propositalmente de outras figuras históricas — como os da Conjuração Baiana — devido ao racismo da época. Foi neste momento que Tiradentes — no retrato à direita — passou a ter traços parecidos com o de outro símbolo histórico que também foi traído: Jesus (no retrato, à esquerda).
Essa mistura de um grão de verdade a uma montanha de especulações não é rara em discussões históricas, mas serve como um lembrete da importância da integridade acadêmica e da verificação de fatos. O revisionismo histórico, especialmente aquele que se serve de desinformação para manipular narrativas, tem impactos duradouros na percepção pública da História.
No final das contas, a veracidade sobre Tiradentes é amplamente conhecida e apoiada por uma rica e profunda historiografia. As tentativas de alterar essa realidade são exemplos de como a desinformação é usada para reescrever o passado, a serviço de agendas políticas contemporâneas.
Não se surpreenda caso veja anúncios no YouTube dizendo que a Justiça Eleitoral vai exigir cartão de vacinação para votar ou com mensagens em códigos como “e$tã0 d1str1bu1nd0 d1nhe1r0 em tr0c@ de v0t0$”. Também não se impressione se um anúncio conter discurso de ódio contra mulheres e pessoas LBGT+. É que, acredite, o Google aprovou isso sem restrição. É o que revelou estudo da FGV Direito Rio divulgado em primeira mão pela Lupa. Ao menos oito anúncios com desinformação eleitoral e sete com discurso de ódio tiveram aval da plataforma em testes feitos em abril — resta saber se a nova política de proibir anúncios políticos a partir de maio evitará casos como esses. [Leandro Becker, editor-chefe]
Que tal um joguinho para aprender a escapar dos perigos da desinformação? Essa é a proposta do Bad News (notícias ruins, na tradução literal), um game em que você assume o papel de um propagador de notícias falsas e passa por desafios em meio à polarização, conspiração e trollagem. Em cada etapa, o jogo convida a tomar decisões e mostra como isso afeta sua credibilidade. Disponível só em inglês o game já virou até tema de pesquisa da Universidade de Cambridge. Na experiência com 516 alunos do Ensino Médio da Suécia, o estudo apontou que o jogo fez os jovens melhorarem na identificação de informações incorretas e na escolha de fontes de notícias confiáveis. [LB]
Falando em jogos, é impossível não lembrar do polêmico Not For Broadcast, jogo lançado no início de 2020 e que foi uma ligeira febre na pandemia. Desenvolvido pelo estúdio NotGames e publicado pela tinyBuild, o jogo nos leva de volta à década de 1980 em um país não identificado para comandar um programa ao vivo – o que, por vezes, parecia se confundir com a realidade política de muitos países. [Marcela Duarte, gerente de Produto]
No Brasil, 65% dos eleitores consideram que as redes sociais ampliam a polarização e lucram com a desinformação. A pesquisa “Desinformação de gênero e Integridade da Informação no Brasil”, feita por #ShePersisted e Lake Research com 1.050 eleitores em março de 2024, mostra ainda que YouTube e Instagram são consideradas as plataformas mais confiáveis, enquanto X, TikTok e Kwai as menos confiáveis. Os jovens preferem o Instagram como fonte de notícia, enquanto os mais velhos optam por portais e TV. Dos entrevistados, 76% se disseram preocupados com discurso de ódio e 62% acreditam que as redes sociais falham em proteger mulheres e meninas contra o assédio online. [Evelin Mendes, editora]
Muitas pessoas utilizam inteligência artificial no dia a dia. Aparentemente até o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes. Nas redes sociais, Paes comemorou a vinda de paulistas para o show da cantora Madonna, que vai acontecer no próximo sábado (4) em Copacabana, zona sul do Rio. Ele utilizou uma imagem gerada por inteligência artificial em sua publicação, porém não se atentou às deformidades nos rostos das pessoas. E olha que não precisa de muita atenção para perceber que não deu muito certo. Usuários nas redes sociais não perdoaram e o caso virou meme. Com a repercussão, o prefeito reconheceu: “ficou um horror". [Nathália Afonso, analista de projetos editoriais]
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