đ "FamĂlia tradicional", uma mentira que mata
#141: Como a desinformação alimenta o Ăłdio e a violĂȘncia contra pessoas LGBT+
Oi, aqui Ă© Luciana CorrĂȘa, editora da Lupa. Hoje o mundo celebra o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+, mas â desculpem â a Lente nĂŁo traz motivos para comemorar. Nesta edição, a repĂłrter Carol MacĂĄrio mostra o que estĂĄ por trĂĄs de um discurso que se tornou muito comum no Brasil: o da âfamĂlia tradicionalâ. Uma combinação de preconceito e desinformação mortal para milhares de pessoas.Â
Como a fake da âfamĂlia tradicionalâ contribui para a morte de pessoas LGBT+ no Brasil
Um levantamento da organização Deep Digital LLYC botou o Brasil em um pĂłdio infame: entre 2019 e 2022, fomos o paĂs com mais interaçÔes de Ăłdio nas redes sociais contra homossexuais e pessoas trans. Dentre as 169 milhĂ”es de mensagens analisadas em 12 naçÔes, o Brasil foi responsĂĄvel por 37,67% do volume de conteĂșdos de Ăłdio direcionados a essa comunidade (pĂĄgina 8).
No encalço da desinformação e do preconceito, estĂŁo assassinatos cruĂ©is motivados pela intolerĂąncia. O exemplo abaixo mostra o tipo discurso de Ăłdio que circula por aĂ: a imagem de uma pessoa apedrejada atĂ© a morte Ă© justificada com a legenda, em inglĂȘs, de que âpessoas LGBT sĂŁo demĂŽniosâ.Â
Por trĂĄs desse discurso, estĂŁo expressĂ”es como "famĂlia tradicional" e "desenho original da famĂlia", que foram apropriadas por movimentos ultrarreligiosos e entidades super polarizadas para promover fakes e aversĂŁo contra a população LGBT+, como mostrou uma sĂ©rie de reportagens produzida por Lupa, Univision, Data CrĂtica e o Instituto Democracia Digital das AmĂ©ricas (DDIA).
A partir da anĂĄlise de mais de 11 mil posts, vieram Ă tona exemplos inegĂĄveis de conteĂșdos com a teoria falsa e conspiratĂłria de que as pessoas LGBTQIAPN+ seriam uma âameaçaâ Ă âfamĂlia tradicionalâ, aquela formada por um homem e uma mulher cisgĂȘneros e heterossexuais. As publicaçÔes a seguir sĂŁo exemplos do pĂąnico moral que alguns tentam criar ao associar a existĂȘncia de homossexuais e trans ao mal.
Ă importante lembrar que a lei brasileira reconhece a famĂlia como sendo formada a partir de laços de afetividade e pertencimento entre as pessoas, e nĂŁo apenas formada por um homem e uma mulher cisgĂȘneros e heterossexuais. Desde 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou as relaçÔes entre pessoas do mesmo sexo Ă s uniĂ”es estĂĄveis entre homens e mulheres. Com isso, reconheceu a possibilidade de famĂlias constituĂdas a partir da uniĂŁo homoafetiva.
AlĂ©m da defesa da âfamĂlia tradicionalâ, tambĂ©m hĂĄ publicaçÔes com acusaçÔes infundadas de que pessoas LGBTQIAPN+ querem perverter as crianças.
Outra teoria sem fundamento que encontra eco entre perfis de extrema-direita Ă© a que acusa a Organização das NaçÔes Unidas (ONU) de tentar implementar, por meio da Agenda 2030, "um governo mundial" disposto a "semear a ideologia de gĂȘnero entre as crianças para que as futuras geraçÔes considerem normal ter um parceiro do mesmo sexo" â o que nĂŁo Ă© verdade.Â
AtĂ© as cores da bandeira arco-Ăris sĂŁo alvo de desinformação para reforçar o risco de âdestruição da famĂlia tradicionalâ. Nas redes, hĂĄ conteĂșdos que "explicam" as cores do sĂmbolo do movimento de forma equivocada e odiosa, associando-os a satanĂĄs, sodomia e mutilação sexual. Criada hĂĄ pelo menos 40 anos, as cores tĂȘm significados como vida, natureza, arte e harmonia.
Chama atenção que, dentre os conteĂșdos falsos, preconceituosos ou de Ăłdio que circulam em portuguĂȘs, a repercussĂŁo se dĂĄ especialmente a partir de pĂĄginas de polĂticos e partidos. Em 19 de dezembro de 2023, por exemplo, posts de deputados federais, como Zucco (PL-RS), JĂșlia Zanatta (PL-SC) e Carol de Toni (PL-SC), e do senador Marcos RogĂ©rio (PL-RO) alegaram âvitĂłria da famĂliaâ ao comemorar a aprovação no Congresso da Lei de Diretrizes OrçamentĂĄrias (LDO) de 2024 com uma emenda (NÂș 30880002) que proibia a UniĂŁo de ter despesas que pudessem atentar contra a âfamĂlia tradicionalâ.Â
A emenda, proposta pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), vetava, entre outros pontos, que o governo gastasse com incentivos Ă s açÔes que pudessem influenciar nas escolas âcrianças e adolescentes a terem opçÔes sexuais diferentes do sexo biolĂłgicoâ â apesar de a LDO nĂŁo prever nenhum valor destinado a isso. Em janeiro, essa emenda foi vetada por Lula, mas acabou reincorporada Ă LDO pelo Congresso, que derrubou o veto.
Em muitos casos, polĂticos que propagam desinformação e discurso de Ăłdio sĂŁo os que propĂ”em e aprovam leis para minar os direitos civis das pessoas LGBTQIAPN+. Levantamento da Lupa mostrou que ao menos 201 projetos de lei que buscavam, de alguma forma, reduzir, limitar ou mesmo eliminar os direitos civis dessa população foram propostos nas assembleias legislativas do paĂs desde 2020. Desse total, sete viraram leis â quatro delas no ano passado.Â
Algumas delas fazem referĂȘncia ao conceito de âfamĂlia tradicionalâ. Desde 2023, por exemplo, crianças e adolescentes do Amazonas nĂŁo podem participar (Lei 6.469/2023) da parada do orgulho LGBQT+ no estado â uma amostra do quanto as teorias infundadas de que pessoas homossexuais e transsexuais supostamente assediam ou sĂŁo maus exemplos para os jovens podem influenciar um texto legislativo.Â
 Dados sobre a violĂȘncia contra a população LGBTQIAPN+ mostram que nĂŁo Ă© essa comunidade que ameaça a âfamĂlia tradicionalâ. Ă o preconceito, alimentado pela desinformação, que coloca em risco a vida de milhares de pessoas.
No Brasil, em um intervalo de apenas 34 horas, uma pessoa LGBTQIAPN+ Ă© morta violentamente. Os dados sĂŁo de 2023 e ainda estĂŁo subnotificados (atĂ© janeiro, 20 casos estavam em investigação), mas evidenciam a vergonhosa liderança do paĂs no ranking das naçÔes que mais matam e deixam matar a população LGBTQIAPN+ (pĂĄgina 26), especialmente pessoas trans e travestis.
A Organização das NaçÔes Unidas (ONU) lançou nesta semana cinco "princĂpios globais para a integridade da informação". As recomendaçÔes nĂŁo valem como lei, mas dĂŁo diretrizes aos paĂses. Uma delas Ă© que governos, empresas de tecnologia, anunciantes e mĂdias nĂŁo devem usar, apoiar ou ampliar a desinformação e o discurso de Ăłdio. Outra defende que governos e plataformas ajam com mais transparĂȘncia e integridade. âOs algoritmos nĂŁo devem controlar o que as pessoas veem", disse o secretĂĄrio-geral da ONU, AntĂłnio Guterres. Sobre inteligĂȘncia artificial, os princĂpios da ONU alertam para a importĂąncia de um uso responsĂĄvel e Ă©tico que nĂŁo viole os direitos humanos. [Leandro Becker, editor-chefe]
Falando em inteligĂȘncia artificial, um estudo do Centro para o Combate ao Ădio Digital (CCDH, na sigla em inglĂȘs) revelou que 80% dos testes feitos por pesquisadores com o uso da tecnologia permitiram clonar a voz de polĂticos como Donald Trump e Joe Biden para produzir ĂĄudios falsos e desinformativos. Entre os ĂĄudios criados, estĂŁo um que Trump alerta as pessoas a nĂŁo votarem por ameaça de bomba e outro em que Biden defende uma manipulação eleitoral, informou o site desinformante. O estudo ainda trouxe recomendaçÔes para prevenir o mau uso de ferramentas, incluindo uma muito Ăłbvia, mas necessĂĄria: a criação de um sistema de emergĂȘncia com intervenção humana. [Leandro Becker, editor-chefe]
Fakes como as citadas acima sĂŁo um enorme risco Ă s eleiçÔes e, de olho no estrago que os desinformadores podem fazer nos prĂłximos meses no Brasil, a Advocacia-Geral da UniĂŁo (AGU) e o MinistĂ©rio PĂșblico Eleitoral (MPE) firmaram acordo para enfrentar a desinformação no processo eleitoral de 2024. A AGU vai encaminhar ao MPE casos que envolvam desinformação contra polĂticas pĂșblicas federais, no contexto de campanhas eleitorais. Um dos objetivos Ă© agilizar a comunicação entre ĂłrgĂŁos pĂșblicos e plataformas digitais para garantir o cumprimento de normas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e conter a circulação de fakes, por exemplo, contra o sistema eletrĂŽnico de votação. [Luciana CorrĂȘa, editora]
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