🔎Lente #130: Como a fake sobre fraude nas urnas sobrevive à 6ª eleição seguida
Leia a 1ª edição da Lente após renovação
Olá, eu sou Leandro Becker, editor-chefe da Lupa e edito hoje a Lente, nossa newsletter semanal sobre narrativas desinformativas. Para estrear a nova fase da Lente e abrir a nossa conversa, a repórter Carol Macário volta no tempo para nos contar como o discurso (falso) de urnas fraudadas nas eleições brasileiras vem se mantendo vivo ano após ano. E o que isso tem a ver com uma invasão marciana que marcou a história da mídia no mundo. Tem ainda duas dicas boas para ouvir e compartilhar e a nossa nova “fake de jacaré” favorita. Boa leitura!
De invasão marciana à fraude nas urnas: como uma mentira cresce e provoca caos
Em 8 de janeiro de 2023, a professora Sheila Mantovanni tinha tanta convicção de que as eleições gerais de 2022 foram fraudadas que julgou ser justo invadir os prédios dos Três Poderes, em Brasília, e pedir intervenção militar para derrubar um governo democraticamente eleito. A educadora acreditou em uma fake news, ficou cinco meses presa e é ré por incitação ao crime e associação criminosa — a Lupa contou essa história em um minidocumentário lançado no começo deste ano.
As informações falsas foram peça-chave na tentativa de golpe, e a entrevista simboliza isso. É mentira que as urnas eletrônicas não são seguras, mas o pânico e o dano que uma balela repetida “um milhão de vezes” é capaz de provocar é real. E serve de alerta, já que neste sábado, 6 de abril, faltarão exatamente seis meses para as eleições municipais.
A teoria conspiratória e mentirosa de que os equipamentos de votação são passíveis de adulteração vem sendo desmentida há pelo menos 10 anos no Brasil. Parece um fantasma imune ao exorcismo, que se transforma e fica mais forte de tempos em tempos, especialmente em períodos eleitorais, alimentado pela polarização política crescente.
Em 2024, esse fantasma tem sido potencializado pela inteligência artificial — uma tecnologia em ascensão que turbina teorias conspiratórias com uma sofisticação perigosa e jamais vista. Prova disso, como a Lupa já mostrou, é que áudios e vídeos gerados por IA já estão circulando e assombrando eleitores com manipulações tão bem feitas que confundem inclusive peritos e especialistas. Você sabia que ferramentas de IA estão incorporando cada vez mais elementos próximos da realidade, como a entonação de voz e sotaque?
Mas, afinal, como uma mentira tantas vezes refutada pela realidade de políticos tomando posse a partir do resultado das urnas, ganhou tanta força no Brasil?
As primeiras fakes sobre urnas eletrônicas começaram a circular em 2014, quando o deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG) perdeu a corrida presidencial para Dilma Rousseff (PT). Inconformado com o resultado de 51 milhões de votos (48,36%) do tucano contra 54,5 milhões (51,64%) da petista, o PSDB pediu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) uma auditoria para verificar a "lisura" do pleito.
(Foto: Agência Senado)
A petição citou “denúncias e desconfianças na internet e nas redes sociais” e argumentou que a auditoria seria necessária para garantir a “confiança do povo brasileiro no processo eleitoral”. O PSDB ainda alegou que a diferença de três horas entre o encerramento da votação no Acre e nos outros estados que seguem o horário de Brasília, além da disputa acirrada na votação, eram "elementos que acabaram por fomentar, ainda mais, as desconfianças". Foi a gênese daquela que seria uma das peças desinformativas mais danosas da história recente da política brasileira.
A auditoria feita na época não provou nenhuma irregularidade. O boato sobre eventuais problemas na votação de 2014 foi desmentido muitas vezes desde então, mesmo após o próprio Aécio ter dito em 2021 que não houve fraude. O PSDB também se manifestou publicamente reiterando que as eleições foram “limpas” e que “confia nas urnas”.
Mas a semente já havia sido plantada — e ela foi regada nos anos seguintes principalmente por aqueles que estavam no poder graças ao sistema que eles mesmos botavam em dúvida. Mais do que um argumento para justificar derrotas eleitorais ou tumultuar a democracia, fato é que, ao longo da última década, essa história mentirosa também ganhou outros personagens e, em especial, um novo protagonista: Jair Bolsonaro.
Ainda antes de o ex-capitão do Exército concorrer à Presidência, a confiança no sistema eleitoral foi sendo minada não apenas por meio de conteúdos nas redes sociais. Entre 2015 e 2016, o próprio Congresso debateu propostas legislativas pedindo a volta do voto impresso — assunto que voltou à pauta em 2019 numa batalha empenhada especialmente por parlamentares bolsonaristas e que acabou definitivamente rejeitada em 2021.
Foi a partir da ascensão de Bolsonaro, no entanto, que a desconfiança infundada cresceu. Ele sistematicamente acusou o sistema eleitoral brasileiro de não ser confiável antes e durante todo o período em que esteve no Planalto. Entre setembro de 2018, quando ele ainda era candidato, e janeiro de 2023, após o fim do seu mandato na Presidência, Bolsonaro fez ao menos 14 ataques públicos às urnas — as mesmas que o elegeram deputado federal cinco vezes consecutivas e presidente em 2018 — e insinuou em pelo menos 19 ocasiões que as eleições foram fraudadas.
Ao contrário de Aécio e do PSDB, que lançaram dúvidas sobre as urnas para justificar a derrota no voto popular, Bolsonaro partiu para o ataque mesmo após ter sido eleito presidente. Em uma das ocasiões, ele disse, sem provas, que deveria ter vencido no primeiro turno se não houvesse “fraude”.
Alegar fraude sem apresentar provas ou usando argumentos absurdos virou um método. De olho na reeleição de seu capitão, o bolsonarismo se valeu de comparações sem sentido, como a disseminação de fakes alegando que a participação de apoiadores em motociatas e em desfiles cívicos de 7 de setembro seria uma prova irrefutável da vitória de Bolsonaro em 2022.
Muita gente não só acreditou como se engajou em uma cruzada contra um inimigo que sequer existia ao “revelar” informações falsas sobre as urnas. Para se ter uma ideia, ao longo do segundo turno da campanha de 2022, o TSE recebeu uma média de 500 alertas diários de fakes relacionados às eleições.
E essa prática persiste mesmo após Bolsonaro deixar o poder. Em 2023, no primeiro ano do terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), parlamentares como os deputados federais Nikolas Ferreira (PL-MG) e Filipe Barros (PL-PR) e o senador Eduardo Girão (Novo-CE), para citar alguns, usaram seus perfis nas redes sociais para divulgar teorias conspiratórias, mesmo após os ataques antidemocráticos de 8 de janeiro.
Alguns desses boatos tiveram o “respaldo” de “especialistas”, como supostos hackers que teriam quebrado o código-fonte das urnas eletrônicas e desvendado o “resultado real” da disputa — o que não é verdade. Essa fake ganhou força nas redes sociais e aplicativos de mensagem, tornando-se um dos principais discursos anti-urnas, principalmente após Bolsonaro usá-la como argumento em uma apresentação para embaixadores em julho de 2022, quando o então presidente espalhou informações descontextualizadas e falsas sobre um suposto ataque cibernético aos sistemas do TSE em 2018.
Entre 2021 e 2024, a Lupa publicou ao menos 26 verificações desmentindo boatos sobre o código-fonte. Uma delas, que viralizou no WhatsApp, era sobre a falsa informação de que o TSE havia fornecido o código a uma empresa de automação eleitoral, o que abriria brecha para fraudes. Outra mentira que ganhou força citava que, por configuração intencional no código-fonte, as urnas teriam pelo menos dois softwares com um algoritmo diferente que limitava o total de votos para o 22 (número do candidato Bolsonaro na votação de 2022) e liberava para o 13 (número do candidato Lula).
Para se ter uma ideia do quanto as falas de Bolsonaro engajavam sua base, em maio de 2022, após o ex-presidente dizer em tom de ameaça que faria uma auditoria privada nas urnas, o Facebook registrou que interações envolvendo o equipamento apareceram 583 mil vezes em páginas, grupos públicos e perfis verificados pela plataforma CrowdTangle em um período de apenas sete dias (8 a 14 de maio de 2022).
Até um empresário argentino tentou convencer brasileiros com um dossiê apócrifo sobre supostas adulterações nas urnas eletrônicas. O mesmo argentino que, um ano depois, em 2023, foi o estrategista da campanha vitoriosa do ultradireitista Javier Milei na Argentina.
A ironia é que, no país vizinho, a votação se dá por meio de papeletas, ou seja, cédulas de papel depositadas em urnas. Por lá, Milei reciclou a narrativa do colega brasileiro e afirmou ter sido vítima de fraude eleitoral com voto impresso. Sem apresentar provas, alegou ter recebido 5 pontos percentuais a mais do que o resultado final apontou — mesmo tendo sido eleito.
O discurso de fraude não é original. Tanto Milei quanto Bolsonaro seguiram a receita do ex-presidente norte-americano Donald Trump. Em 2020, quando perdeu as eleições para o democrata Joe Biden, o republicano fez uma série de alegações falsas sobre o resultado das eleições. Os ataques de Trump incentivaram apoiadores a invadir o Capitólio, centro legislativo dos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021.
A disseminação sistemática de conteúdos que colocam em xeque a segurança das urnas tem sido tão bem orquestrada no Brasil que a impressão que se tem é que trapaceia o senso de realidade de muitas pessoas e as induzem a confundir ficção e realidade. Alexandre de Moraes, presidente do TSE, definiu esse fenômeno como “lavagem cerebral”.
Esse estado de “trapaça da realidade”, cujo palco são as redes sociais, lembra um episódio muito emblemático da história da mídia em todo o mundo. Na noite de 30 de outubro de 1938, a rede de rádios CBS, nos Estados Unidos, interrompeu a programação musical para uma notícia em “edição extraordinária”: criaturas alienígenas em máquinas de guerra marchavam em direção à Nova York. Com sirenes ao fundo, locutores em campo descreveram nuvens espessas de gás venenoso, ouviam-se gritos e relatos de testemunhas. Peritos e autoridades opinavam sobre a invasão. Ouvintes desesperam-se, houve pânico.
Mas o ataque durou apenas uma hora e não passou de uma “fake news”, uma dramatização radiofônica do livro de ficção científica A Guerra dos Mundos, do escritor inglês Herbert George Wells (1866-1946), adaptada pelo então desconhecido e jovem ator e diretor de cinema norte-americano Orson Welles (1915-1985).
Quase 86 anos depois, muito se estudou sobre o episódio, inclusive os porquês de tantas pessoas confundirem ficção e realidade a ponto de renderem-se ao pânico. Entre as teorias aventadas, estava a ideia de que existia uma "memória coletiva do futuro" sobre Marte e a existência de habitantes no planeta vermelho supostamente interessados em uma invasão da Terra.
O radioteatro de Welles é uma metáfora do fenômeno da desinformação nas redes sociais no Brasil. Por aqui, ao longo dos últimos 10 anos, foi-se construindo uma “memória coletiva de futuro” inventada e estrategicamente manipulada sobre fraude nas urnas — uma “realidade” construída e fomentada justamente por quem foi eleito pelo sistema que questiona.
Assim como a dramatização de A Guerra dos Mundos, a onda de narrativas desinformativas sobre o sistema eleitoral brasileiro protagonizadas por figuras consideradas “de confiança”, uma vez que foram eleitas pelo povo, segue dando condições para que o senso de realidade dos eleitores seja ludibriado.
Por aqui, seguimos checando fatos para que ninguém entre em pânico — nem com uma invasão marciana nem com algo muito mais real: os ataques à democracia.
“Esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem de ser", disse o general Ernesto Geisel, que comandou o Brasil de 1974 a 1979, durante a ditadura militar. Afirmações como essa ajudam a comprovar fatos históricos que frequentemente são alvo de teorias conspiratórias, como a que questiona se houve torturas e mortes durante o período de repressão na ditadura militar. Outras gravações deixam claro que os Estados Unidos acompanharam de muito perto o que acontecia no Brasil – mas que não tiveram envolvimento militar direto. Um dos exemplos é uma conversa de 30 de julho de 1962, quando o então presidente norte-americano, John Kennedy, estava inaugurando o sistema de gravação de conversas no Salão Oval da Casa Branca. Na gravação, ele fala com o embaixador Lincoln Gordon, diplomata baseado em solo brasileiro, que alertava para a possibilidade de um golpe militar no Brasil. Essa conversa aconteceu quase dois anos antes da efetivação do golpe, o que demonstra que a Casa Branca acompanhou cada passo do movimento, e que a informação chegou lá muito antes do golpe. Esses áudios e transcrições de conversas fazem parte de um novo podcast da CBN feito a partir de gravações do acervo do jornalista Elio Gaspari e que traz áudios inéditos de Geisel, com quem o jornalista mantinha encontros gravados. Também é muito interessante o uso que foi feito da inteligência artificial, que ajudou a deixar mais claros alguns áudios que não tinham uma qualidade muito boa. O nome do podcast para você pesquisar na sua plataforma de streaming favorita: "A ditadura recontada". [Por Marcela Duarte]
A geração que cresceu ouvindo a mensagem “Este medicamento é contraindicado em caso de suspeita de dengue” em comerciais de remédios na TV enfrenta em 2024 uma epidemia de dengue e uma avalanche de desinformação sobre a doença. Não basta lembrar que o ácido acetilsalicílico, ou AAS, substância presente em vários antigripais, não deve ser tomado por quem contraiu dengue. Hoje também é preciso reforçar que água de alho não previne a doença e que chás com folha de mamão, inhame, picão preto, limão e até caldo de cana não são eficazes no tratamento. Sim, tudo isso está circulando nas redes e grupos de WhatsApp e Telegram. Se você ainda não foi impactado por nenhuma dessas receitas, possivelmente alguém da sua família foi. Como os números da epidemia continuam preocupando — até a manhã desta sexta já são 1.044 mortes e mais de 2,7 milhões de prováveis casos —, é muito importante fazer a informação verdadeira circular também. Que tal aproveitar o fim de semana para compartilhar nos grupos da família e amigos esse link que reúne várias fakes sobre prevenção e tratamento da dengue? Nele, reunimos algumas dessas receitas falsas e explicamos por que elas não devem ser replicadas. E se você se deparar com alguma receita estranha que não está nessa lista, pode enviar que a Lupa checa também. [Por Luciana Corrêa]
Até agora a fake envolvendo jacaré mais famosa do Brasil era a do ex-presidente Jair Bolsonaro e os supostos efeitos da vacina da Covid-19. Mas a frase dita em 2020 ganhou uma forte concorrente. Vem de Minas Gerais a história que pode fazer você dar boas risadas nesta sexta-feira. No caso que aconteceu em Vespasiano, na Grande Belo Horizonte, a fake era o próprio animal. Bombeiros e polícia foram acionados para resgatar um jacaré, de aproximadamente 1 metro de comprimento, em um condomínio. E o resgate ocorreu. Mas foi só na hora da captura que os militares viram que o bicho não era de verdade (o vídeo mostra exatamente esse momento). A réplica foi feita por um morador do condomínio, que é biólogo, e colocada no jardim como decoração, mas um ruído de comunicação causou a confusão. Apesar das risadas que o caso rendeu, fica a orientação do Corpo de Bombeiros: se você avistar um jacaré na sua casa, acione os bombeiros mesmo sem saber se ele é de verdade. Já o de mentira de Vespasiano vai continuar no condomínio agora que todo mundo sabe a verdade sobre ele. [Por Luciana Corrêa]
Conheça nossa política de privacidade.