🔎O que a expressão “índio de iPhone” carrega
#132: O 19 de abril e as fakes que alimentam preconceito contra os povos originários
Olá! Aqui é Leandro Becker, editor-chefe da Lupa. Hoje é Dia dos Povos Indígenas e nesta edição da Lente, nossa newsletter semanal sobre narrativas desinformativas, a repórter Carol Macário mostra como a desinformação sobre indígenas continua se pautando em antigos e ultrapassados estereótipos. Até mesmo conteúdos de humor são usados para incitar o ódio contra eles. Tem ainda uma preocupação com a IA de Elon Musk e o Dr. Dráuzio cada vez mais irritado com a Meta. Boa leitura!
‘Índio de iPhone’ e as fakes que carregam ódio e preconceito contra indígenas
Uma pessoa branca não deixa de ser branca porque usa um aparelho celular. Um indígena não perde sua identidade por ter um iPhone. Só que, no segundo caso, um ato corriqueiro no século 21, o de usar um telefone, é motivo para preconceito e violência.
O mito da selvageria, de que “lugar de índio” é na floresta e, de preferência, no ano de 1500, é uma das desinformações mais cruéis e persistentes do Brasil. O exemplo do iPhone é simbólico por ser um argumento batido usado para mentir, ridicularizar, ameaçar, desqualificar e apagar a existência dos povos indígenas. Você também pode testar: uma pesquisa por esses termos no Google ou nas redes sociais leva a uma quantidade vexatória de publicações falsas, agressivas e preconceituosas.
E não é só o uso da tecnologia que causa essa reação. A ativista Txai Suruí, da etnia paiter suruí, de Rondônia, é um exemplo do quanto a existência e ascensão de uma indígena provoca intolerância. Em 2021, ela virou alvo de desinformação e ataques racistas depois que discursou na COP-26, a Cúpula do Clima.
Posts com fotos de uma mulher participando de festas falsamente insinuavam se tratar de Txai, questionando o “pertencimento indígena” da ativista porque supostamente ela usava a “fantasia de indígena VIP” apenas em eventos como a COP-26, e não em festas como as mostradas no post. Não era ela a pessoa da foto, a única semelhança era a cor do cabelo. Mas, e se fosse? Txai tem menos direito à diversão?
“A gente vê a reprodução de um modo de ver os indígenas como pessoas que não estão andando com o tempo, que não evoluem, que devem ficar sempre no cantinho, na aldeia, fechadas.
Txulunh Gakran, líder indígena da etnia xokleng, em Santa Catarina, e integrante do movimento Juventude Xokleng
Ataques virtuais usando termos pejorativos e depreciativos, como “tribos armadas”, “povo perigoso”, “índios armados com arco e flecha” e “índios baderneiros” são recorrentes nas redes sociais, como já mostrou a Lupa. O repórter Ítalo Rômany denunciou que conteúdos irônicos e de humor produzidos por influenciadores digitais indígenas estavam sendo disseminados no Facebook e no WhatsApp por grupos da extrema-direita para desqualificar os povos originários.
Essa onda desinformativa começou a partir dos vídeos de humor publicados por Kauri Waiãpi, influenciador indígena da etnia Wajãpi que é conhecido nas redes sociais como Daldeia. Ele produz conteúdos que ironizam as críticas aos povos indígenas, como o próprio uso de celular ou os boatos de que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) teria distribuído antenas da Starlink e bolsas de R$ 15 mil — o que não é verdade.
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Embora ele seja conhecido por suas sátiras, muitos usuários não entenderam o sarcasmo, distorceram as informações e passaram a compartilhar os vídeos de Daldeia como se fossem verdade com legendas ofensivas. E o estereótipo do indígena preguiçoso e que não trabalha ganhou as redes mais uma vez.
A violência e o preconceito secular contra indígenas, vale lembrar, não são resultado de somente uma linha desinformativa. Além da reprodução de um “índio” estereotipado, “selvagem e violento”, o discurso falso de que “índio não precisa de terra” é acionado com frequência, especialmente por quem tem interesse em território.
O fechamento de uma barragem e a consequente inundação de várias aldeias do Território Indígena (TI) Ibirama-La Klãnõ, na região do Alto Vale do Itajaí (SC), são episódios da violência pautada em uma desinformação secular e estimulada pela briga por terra.
A Lupa mostrou em novembro passado na série Vítimas da Desinformação.
“Uma das maiores mentiras que dizem por aí é a de que o ‘índio’ não precisa de terra, que ‘índio’ ganha tudo. É mentira. Hoje, dependemos de doações para sobreviver.”
Nicácio Mariano, liderança xokleng ligada ao cacique do território Território Indígena (TI) Ibirama-La Klãnõ, na região do Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina
A história dos xokleng é emblemática. A luta desse povo — praticamente exterminado até o começo do século 20 — deu início à ação judicial do marco temporal e mostra que a disputa territorial tende a ignorar a ancestralidade e o direito indígena.
Disputas políticas também influenciam o discurso desinformativo contra indígenas, inclusive quando estão na pauta crianças e idosos morrendo por desnutrição e outras doenças evitáveis provocadas pela contaminação de águas pelo garimpo. É o caso da crise humanitária do povo yanomami, alvo de fakes grotescas, como a de que os indígenas em situação de vulnerabilidade seriam venezuelanos ou que a crise era resultado de uma “ditadura de esquerda”.
Um dos boatos dizia que a ONG que denunciou a desnutrição dos yanomami teria desviado R$ 33 milhões, além de manter vínculos com Lula e PT. A mentira se baseou em um texto que confundiu duas organizações com nomes parecidos e fez uma acusação infundada. Quem assinava a publicação era Oswaldo Eustáquio, blogueiro bolsonarista investigado no inquérito das fake news. A Lupa desmentiu.
O conteúdo falso se espalhou por um caminho bem conhecido no universo das fakes: print do título do texto, como se fosse uma notícia com padrão jornalístico de apuração, levando usuários a interpretarem a informação como correta.
Esses ataques também foram uma estratégia usada para defender o governo de Jair Bolsonaro (PL) de denúncias de violências praticadas no território, como a Lupa mostrou.
E para quem ainda não sabe o que os indígenas tanto fazem com iPhone, me despeço com uma dica: graças aos smartphones, projetos como a Juventude Xokleng hoje podem combater a desinformação e o preconceito. Esse movimento, formado por jovens em Santa Catarina, usa as redes sociais para denunciar abusos, racismo e, principalmente, para contar sua história.
Um estudo do British Medical Journal (BMJ) testou ferramentas de inteligência artificial (IA) e verificou que elas podem ser "orientadas" a produzir desinformação em massa sobre saúde. A pesquisa indicou que ChatGPT, Bard e HuggingChat geraram textos desinformativos de forma "consistente", inclusive associando protetor solar a câncer e afirmando que uma dieta alcalina pode curar câncer. Outra constatação foi de que a tecnologia criou até mesmo falsos depoimentos de pacientes e médicos. Mas houve boas notícias: Poe e Copilot se recusaram a gerar desinformação e disseram que "não é ético fornecer informações falsas que possam prejudicar a saúde das pessoas". [Leandro Becker, editor-chefe]
Falando em IA, a xAI, de Elon Musk, revelou detalhes sobre novos recursos da ferramenta Grok. Entre eles, está ler um diagrama representando um raciocínio e transformá-lo em um código de programação para executar instruções. Mas pesquisadores registraram que isso pode fazê-la sugerir atividades criminosas. Segundo estudo da Adversa, o Grok forneceu instruções para a fabricação de uma bomba e até para seduzir crianças, sem advertências ou impedimento. Há preocupação que, assim como ocorreu com o X (ex-Twitter), a redução de políticas de moderação de conteúdo possa fazer com que o Grok estimule comportamentos criminosos, antiéticos e problemáticos. [Flávia Campuzano, analista de Produto]
O médico Dráuzio Varella, que tem sido vítima constante de golpes com uso da IA associando sua imagem e voz a produtos sem comprovação científica, resolveu acionar o Ministério Público contra a Meta. Um novo post que circula no Facebook usou a imagem do médico e um áudio falso para indicar o uso de ozônio para tratamento contra hemorroidas. Em entrevista para O Globo, Dráuzio definiu que as postagens se constituem como crime contra a saúde pública. Também afirmou já ter reunido cerca de 40 registros de fakes. Outras pessoas famosas também são frequentemente associadas a produtos e pseudo soluções milagrosas, como a Lupa já mostrou. [FC]
E a Meta também é motivo de preocupação no Canadá. Por lá, a empresa não exibe links de notícias desde agosto de 2023, após uma lei obrigar as big techs a pagar às empresas de mídia para veicular seu conteúdo jornalístico. Estudos compartilhados com a Reuters já mostram os impactos disso. Reportagens e informações verificadas deram lugar a memes em grupos de discussão. Já as interações em conteúdos classificados como “fontes não confiáveis” subiram de 2,2% (média registrada 90 dias antes dos bloqueios) para 6,9% (média 90 dias depois). No Brasil, uma ideia semelhante tramita no Congresso, mas, por enquanto, a discussão está parada. [Luciana Corrêa, Editora]
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