🔎 Por que o PL do Aborto não defende a vida
#140: Entenda a narrativa falsa por trás de projeto que tira direito das mulheres
Oi, sou a Luciana Corrêa, editora da Lupa, e nesta semana escrevo com a minha colega, a repórter Carol Macário, o texto que abre esta edição. O assunto só poderia ser aquele que há dias mobiliza o Brasil, especialmente nós, mulheres: o infame PL 1904/2024 — a proposta que quer impedir o aborto acima das 22 semanas nos casos já previstos em lei. Não basta ser cruel, a proposta está cercada por mentiras e distorções. A maior delas é que esta seria uma vitória da vida. Não é!
PL do Aborto usa fakes, tira direitos e distorce “vitória da vida”
Horas depois de o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aprovar o regime de urgência do PL 1904/2024, o PL do Aborto, perfis e páginas de extrema-direita no Facebook sincronizaram uma campanha de uma alegada “vitória da vida”. O projeto de lei equipara o aborto legal de gestação acima de 22 semanas — direito previsto em lei desde 1940 em caso de estupro e risco à pessoa gestante e, desde 2012, se houver confirmação de anencefalia — ao crime de homicídio.
Nas redes sociais, o argumento apresentado nos posts “pró-vida” é de que a proposta “defende os mais vulneráveis” e “respeita a vida em todas as suas fases”, mas isso não é verdade. Se a preocupação é com a vida das crianças, por que tratá-las como assassinas e submetê-las a penas que podem variar de liberdade assistida até internação em estabelecimento educacional em vez de cobrar políticas públicas que evitem que meninas e mulheres sejam estupradas a cada sete minutos no Brasil?
Em 2022, 61% das vítimas de estupro eram meninas de até 13 anos (página 6). E apenas 3,9% das vítimas com idade entre 10 a 14 anos que engravidaram tiveram acesso ao aborto legal entre 2015 e 2020.
E, se a vida é um "valor inegociável", por que não cobrar que o Congresso discuta como evitar que meninas e mulheres morram todos os anos por falta de acesso a meios seguros para interromper a gravidez nos casos previstos em lei? Para se ter uma ideia, entre 2012 e 2022, foi registrada uma morte a cada 28 internações por falha na tentativa de aborto. Negras, menores de 14 anos e moradoras da periferia são as que mais morrem.
Além de não convencer nesses objetivos, o PL 1904 usa informações distorcidas e falsas sobre protocolos médicos, suposições sem embasamento e conceitos antigos.
Dentre as fakes usadas para justificar a proposta, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) — autor do PL juntamente com outros 55 parlamentares, incluindo 24 que pediram para serem incluídos esta semana — cita afirmação da juíza Joana Zimmer de que “a palavra aborto tem um conceito, e esse conceito é de até 22 semanas. Esse conceito é o da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde” (página 8). A frase foi copiada de uma entrevista de 2022 da magistrada, que negou o direito ao aborto a uma criança de 11 anos que ficou grávida após ter sido estuprada.
O argumento, contudo, é falso. O OMS não estabelece nenhum limite de idade gestacional ao definir o conceito de aborto. A organização também desaconselha leis e regulamentações que proíbam o aborto com base nos limites (página 102) do tempo gestacional.
O PL também engana ao afirmar que o Ministério da Saúde recomenda a interrupção da gravidez legal apenas até 22 semanas. O texto usa documentos desatualizados e omite que, desde 2023, a pasta não impõe um limite gestacional para o aborto legal.
A justificativa do PL também não cita que a penalidade de até 20 anos de prisão, a mesma para o crime de homicídio — o texto do projeto é genérico e não faz referência a exceções em casos de menores de idade — é maior do que a punição atual para quem comete o crime de estupro (seis a dez anos).
Chama atenção a contranarrativa mentirosa adotada por alguns parlamentares ao serem confrontados por esse detalhe do PL. O senador Eduardo Girão (Novo-CE), por exemplo, reclamou em sessão no Senado que "a grande mídia" manipula a opinião pública ao chamar atenção para a informação sobre a pena — que é verdadeira, pois consta na proposta.
Mas se a verdade sobre o texto do projeto incomodou, desinformar segue sendo uma tática usada para reforçar a comoção entre o eleitorado. No domingo (16), o deputado Sóstenes Cavalcante, autor do PL 1904, gravou e publicou em suas redes um vídeo em que diz que abortos são feitos para que fetos sejam vendidos para a fabricação de cosméticos.
Na gravação, Cavalcante mencionou dois casos antigos e comprovadamente falsos que ocorreram no Reino Unido e nos Estados Unidos. Esse detalhe, claro, o parlamentar não disse no vídeo — que até o envio desta edição da Lente já tinha mais de 270 mil visualizações apenas no X (antigo Twitter).
Na segunda-feira (17), o plenário do Senado, um espaço mantido com dinheiro público, foi usado durante sete horas por parlamentares e convidados que ignoraram que o Brasil é um estado laico e recorreram à desinformação e à religião para defender o PL. Até o Antigo Testamento, da Bíblia, foi evocado e uma encenação de um feto durante um aborto feita — sim, é isso mesmo que você leu.
A discussão tomou as redes e até as pouco frequentadas enquetes promovidas pelo site da Câmara mostraram que muitos brasileiros são contrários ao PL 1904. Mas até o envio desta newsletter, a proposta segue viva na Câmara e isso se deve, principalmente, a uma narrativa apelativa que ignora fatos, estatísticas, a opinião de muitas mulheres, de entidades médicas e a própria constitucionalidade do projeto.
Se nada disso conta para os deputados, o que vale, então?
Fato é que este debate, assim como muitos outros, não é pautado na realidade de mulheres e crianças violentadas todos os dias, mas em versões criadas para serem usadas como moeda de troca por votos no Congresso e para agradar só uma parcela da população. Se o PL 1904 é a “vitória da vida”, resta saber da vida de quem, já que das mulheres e meninas que vivem no Brasil não é.
Falando em direitos da mulher, Maria da Penha, que foi vítima de tentativa de homicídio e inspirou a criação de uma das leis de proteção mais conhecidas do país, passou a integrar desde junho o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Pode parecer inacreditável, mas ela segue sendo alvo de ataques e desinformação. Uma série de vídeos falsos de apoiadores da extrema-direita tem espalhado que ela ficou paraplégica devido a um assalto — e não por ter sido atingida a tiros pelo então marido. As fakes, xingamentos e ameaças fizeram a cearense de 79 anos mudar a rotina temendo violência. “Limitei muito a minha saída para lugares públicos", disse ela ao G1. [Leandro Becker, editor-chefe]
O Facebook foi inundado por imagens absurdas, como o "Jesus camarão" , criadas por IA para gerar interação e atrair cliques para anúncios, fenômeno apelidado de “slop” (lixo). Esse conteúdo artificial alimenta a chamada "zumbificação" da internet, em que perfis robóticos interagem entre si e com humanos, aumentando o engajamento de postagens bizarras — a disseminação dessas imagens é impulsionada pelo algoritmo. A pesquisa State of Fake Traffic Report, da empresa CHEQ, cita que 18% dos cliques na internet são feitos por bots, reforçando a “teoria da internet morta”, onde o conteúdo orgânico é substituído por criações automatizadas. [Flávia Campuzano, analista de Produto]
E caso a sua conta seja pública no Facebook ou no Instagram, fique atento porque a Meta — empresa dona das plataformas — vem usando publicações de usuários para treinar a Llama, como é chamada a sua inteligência artificial (IA). Isso inclui desde fotos até legendas, segundo a própria empresa admitiu em seu blog oficial. Apesar de o Brasil ter a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), nenhum aviso foi dado pela Meta aos usuários. A empresa também não explica o que fazer para se opor a este uso. Mas há como impedir isso se você estiver no Brasil ou na Europa: a dica é conferir o passo a passo detalhado feito pelo desinformante. [Leandro Becker, editor-chefe]
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